15 de julho de 2005

verão

(o verão que tarda em chegar)

XXII – Num dia de Verão

Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...

Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?

Quando o Verde me passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...


XLI – No entardecer

No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...

Ah!, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!
Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão...
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos...

Mas graças a Deus que há imperfeição no mundo
Porque a imperfeição é uma coisa,
E haver gente que erra é original,
E haver gente doente torna o mundo engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma coisa a menos,
E deve haver muita coisa
Para termos muito que ver e ouvir...

Alberto Caeiro [Fernando Pessoa] | O Guardador de Rebanhos | 1914



2 comentários:

l disse...

Bem escolhido.

linfócittos disse...

Procurar o meu «dia de verão» numa janela digital continua a passar por «espreitar para o calor dos campos» desta vossa casa.
Um passeio cibernético ao outro lado da «Natureza de chapa» da representação humana.
E o que os poetas, porventura, me pareceram deixar omisso, as vossas composições deixam «os nossos sentidos terem a ilusão do que lhes agradaria» ali também encontrar.
Beijos