29 de julho de 2005

pai nosso

 
© Paulo A. @ www.olhares.com

Pai Nosso,
que estais nos céus
santificado seja o Vosso nome,
venha a nós o Vosso reino,
seja feita a Vossa vontade
assim na Terra como no Céu.

O pão nosso de cada dia nos dai hoje,
perdoai-nos as nossas ofensas
assim como nós perdoamos
a quem nos tem ofendido
e não nos deixeis cair em tentação,
mas livrai-nos do mal.

Oração



26 de julho de 2005

chuva

(choveu, finalmente)

Chove uma grossa chuva inesperada
que a tarde não pediu mas agradece.
Chove na rua, já de si molhada
duma vida que é chuva e não parece.
Chove, grossa e constante,
uma paz que há-de ser.
Uma gota invisível e distante
na janela, a escorrer.

Miguel Torga



24 de julho de 2005

liberdade


Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

Sophia de Mello Breyner Andresen | Mar Novo | 1958



15 de julho de 2005

verão

(o verão que tarda em chegar)

XXII – Num dia de Verão

Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...

Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?

Quando o Verde me passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...


XLI – No entardecer

No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...

Ah!, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!
Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão...
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos...

Mas graças a Deus que há imperfeição no mundo
Porque a imperfeição é uma coisa,
E haver gente que erra é original,
E haver gente doente torna o mundo engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma coisa a menos,
E deve haver muita coisa
Para termos muito que ver e ouvir...

Alberto Caeiro [Fernando Pessoa] | O Guardador de Rebanhos | 1914



14 de julho de 2005

escrito como vi

© vmdcc @ www.olhares.com

Uma brisa ligeira agita as folhas do salgueiro
os lótus de flores ébrias embebem-se de poente
nos montes distantes pálidas nuvens acariciam o céu ainda claro
a rapariga dos pós vermelhos tem seguramente doze, treze anos
docemente, ela recolhe uma canoa de nenúfares

Zhang Kejiu | Cinquenta"Xiaoling" | Trad. Albano Martins



13 de julho de 2005

pensamento primaveril


O medo mistura-se ao prazer
enquanto ela sorri ao pensar que vai ao seu encontro
A caminho do lago o orvalho da montanha refresca-lhe as mangas de seda
Quem se habituaria a estas coisas ilícitas?
Somente o receio de faltar ao juramento secreto
leva com passos cautelosos ao quiosque de perfumes de brocado
Espreita, procura nos ruídos do vento
esconde-te à espera do amor perfumado
Ao pé do muro branco uma flor brinca com a sua sombra
Sob as persianas vermelhas o brilho disfarçado da lua
Docemente
com um sopro, a lâmpada apaga-se

Zhang Kejiu | Cinquenta"Xiaoling" | Trad. Albano Martins



12 de julho de 2005

e por vezes

© Angelica @ www.olhares.com

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira | Matura Idade | 1973