31 de março de 2005

30 de março de 2005

as portas de jericó


Para derrubar muralhas,
Em Jericó,
Usaram mil trombetas.

Tivessem usado as tuas palavras,
E as portas
Seriam oferecidas.

deNeve



22 de março de 2005

sol de primavera


Deixo a brisa de leste banhar-me a face
A primavera resplandece de norte a sul
Com dez mil tons de vermelho
e dez mil tons de azul

Chu Hsi (séc. IX) - trad.: Jorge Sousa Braga



21 de março de 2005

4 elementos II


Procuro. Aqui estou.
Um chão para encontrar
a essência de respirar.
A coragem de navegar
os incêndios por atear.
Procuro. Aqui vou.



20 de março de 2005

a magnólia


Para celebrar a Primavera surgida

A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem a forma
o meu esplendor.

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.

Luiza Neto Jorge



17 de março de 2005

4 elementos


aqui estou
rasgada de terra
cortada de ar
aguardo
cruzar a água
acender o fogo
e ir



13 de março de 2005

cântico dos cânticos

[...]

ele
Ah! Como és bela, minha amiga!
Como são lindos os teus olhos de pomba!

ela
Ah! Como é belo o meu amado!
E como é doce,
como é verdejante o nosso leito!
Cedros são as vigas da nossa casa,
e os ciprestes, o nosso tecto.

ele
Tal como um um lírio entre os cardos
é a minha amada entre as jovens.

ela
Tal como a macieira entre as árvores da floresta
é o meu amado entre os jovens.
Anseio sentar-me à sua sombra,
que o seu fruto é doce na minha boca.
Leve-me para a sala do banquete,
e se erga diante de mim a sua bandeira de amor.
Sustentem-me com bolos de passas,
fortaleçam-me com maçãs,
porque eu desfaleço de amor.
Por baixo da minha cabeça ele põe a mão esquerda
e abraça-me com a sua mão direita.
Eu vos conjuro, mulheres de Jerusalém,
pelas gazelas ou pelas corças do monte:
não desperteis nem perturbeis
o meu amor, até que ele queira.

A voz de meu amado! Ei-lo que chega,
correndo pelos montes,
saltando pelas colinas.
O meu amado é semelhante a um gamo
ou a um filhote de gazela.
Ei-lo que espera,
por detrás do nosso muro,
olhando pelas janelas,
espreitando pelas frinchas.
Fala o meu amado e diz-me:

ele
Levanta-te! Anda, vem daí,
ó minha bela amada!
Eis que o Inverno já passou,
a chuva parou e foi-se embora;
despontam as flores na terra,
chegou o tempo das canções,
e a voz da rola
já se ouve na nossa terra;
a figueira faz brotar os seus figos
e as vinhas exalam perfume.
Levanta-te! Anda, vem daí,
ó minha bela amada!
Minha pomba, nas fendas dos rochedos,
no escondido dos penascos,
deixa-me ver o teu rosto,
deixa-me ouvir a tua voz.
Pois a tua voz é doce
e o teu rosto encantador.

[...]

ela
Sob a macieira te despertei,
lá onde a tua mãe sentiu as dores,
onde sentiu as dores a que te deu à luz.
Grava-me como selo em teu coração,
como selo no teu braço,
porque forte como a morte é o amor,
implacável como o abismo é a paixão;
os seus ardores são chamas de fogo,
são labaredas divinas.
Nem as águas caudalosas conseguirão
apagar o fogo do amor,
nem as torrentes o podem submergir.
Se alguém desse toda a riqueza de sua casa
para comprar o amor,
seria ainda tratado com desprezo.

BíBLIA © Difusora Bíblica, 2ª ed., Maio 2000, dir. Herculano Alves



7 de março de 2005

segredo

d’après Amadeo Modigliani

Nem o Tempo tem tempo
para sondar as trevas

deste rio correndo
entre a pele e a pele

Nem o Tempo tem tempo
nem as trevas dão tréguas

Não descubro o segredo
que o teu corpo segrega

David Mourão Ferreira



6 de março de 2005

o descascador de canela


Se eu fosse um descascador de canela
deitar-me-ia na tua cama
e deixaria o pó amarelo da casca
na tua almofada.

Os teus seios e os teus ombros cheirariam a canela
nunca mais poderias passar no mercado
sem a profissão dos meus dedos
flutuando por cima de ti. O cego tropeçaria
certo de quem se aproximava
mesmo que tomasses banho
na chuva das calhas, na monção.

Aqui no cimo da coxa
neste macio pasto
vizinho do teu cabelo
ou do sulco
que te divide as costas. Este tornozelo.
Serás conhecida entre os estranhos
como a mulher do descascador de canela.

Só a custo te podia ver
antes do casamento
nunca te toquei
- a tua mãe nariguda, os teus irmãos tão brutos.
Enterrei as minhas mãos
em açafrão, disfarcei-as com
alcatrão de tabaco
ajudei os apicultores a colher o mel...

Uma vez que estávamos a nadar
toquei-te na água
e os nossos corpos permaneceram livres,
podias segurar-me e ser cega de cheiro
Saltaste a margem e disseste

isto é como tu tocas as outras mulheres
a mulher do cortador de relva, a filha do queimador de limão
E procuraste nas tuas mãos
o perfume desaparecido

e soubeste
como é bom
ser a filha do queimador de lima
deixada sem marca
como se lhe tivessem falado no acto do amor
como se ferida sem o prazer de uma cicatriz
Roçaste o teu ventre nas minhas mãos
no ar seco e disseste
sou a mulher do descascador
de canela. Cheira-me.

Michael Ondaatje



5 de março de 2005

4 de março de 2005

a casa onde às vezes regresso é tão distante

(na morte do Victor Wengorovius - in memoriam)

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado do meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

José Tolentino Mendonça



3 de março de 2005

a meu favor

Ana Irene @ www.olhares.com

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.

Alexandre O’Neill



2 de março de 2005

gémeos


ao início,
de sonhar fundidos,
(um são dois, dois são um)
(eu sou tu, tu és eu)
despertaram para a unidade,
sem acreditar.
(eu sou eu, tu és tu?)

acordados ainda se confundiam.
(esta mão, que é tua, é minha)
da confusão, nasceu a luta.
(esta mão, que é minha, não a quero)
viveram dias
na batalha da identidade.
(eu não sou tu, tu não és eu)

por fim,
viram que são realmente dois
e estão unidos



1 de março de 2005

coração vagabundo

Meu coração não se cansa
De ter esperança
De um dia ser tudo o que quer
Meu coração de criança
Não é só a lembrança
De um vulto feliz de mulher
Que passou por meus sonhos
Sem dizer adeus
E fez dos olhos meus
Um chorar mais sem fim
Meu coração vagabundo
Quer guardar o mundo
Em mim

Vinícius de Moraes