29 de junho de 2005

praia

© carlos duarte @ www.olhares.com

É agora. A água passa
liberta agulhas
despertas, tu

agora devagar
– pode ser –
começas.

A mão move
precisa os dedos eles
tocam como as agulhas
despertam
e é agora, de claridade
nos cegas.

A boca inicia
algo exacto
mas como a água passa
luz liberta
o beijo alarga em
clarão.

E manifesta-se
mais como as agulhas.
É já outro
habita nova morada.
Como o osso de um pardal
onde deus viveu
esta manhã.



27 de junho de 2005

é a labareda da seda sob os dedos transmitida


© simplesmente maria @ www.olhares.com

(ainda Eugénio de Andrade)

É a labareda da seda sob os dedos transmitida
ao corpo todo, seda extraída ao segredo -
tocar e ser tocado, sentir em si
a ligeireza do fogo, a profundeza,
e estremecer, ficar em chaga:
e com dedos e sedas manter às labaredas, entre
terror e louvor
a comburente, combustível composição de tudo: ser
queimado vivo,
ser luminoso.

Herberto Hélder - "Uma prenda para Eugénio com algumas túlipas"



19 de junho de 2005

agradeço-te Deus por mais este espantoso

© Emanuel Couto @ www.olhares.com


i thank You God for most this amazing
day: for the leaping greenly spirits of trees
and a blue true dream of sky; and for everything
which is natural which is infinite which is yes

(i who have died am alive again today,
and this is the sun's birthday; this is the birth
day of life and of love and wings: and of the gay
great happening illimitably earth)

how should tasting touching hearing seeing
breathing any -lifted from the no
of all nothing - human merely being
doubt unimaginable You?

(now the ears of my ears awake and
now the eyes of my eyes are opened)

e.e. cummings


agradeço-te Deus por mais este espantoso
dia: pelos saltitantes esverdeados espíritos das árvores
e um azul verdade sonho de céu; e por tudo
que é natural, que é infinito, que é sim

(eu que morri estou hoje de novo vivo
e este é o dia de anos do sol; este é o nascente
dia da vida e do amor e das asas: e do alegre
grande acontecimento ilimitadamente terra)

como poderia saboreando tocando ouvindo lendo
respirando tudo - erguido do não
de todo o nada – humano meramente sendo,
duvidar inimaginável Tu?

(agora os ouvidos dos meus ouvidos despertam e
agora os olhos dos meus olhos estão abertos)

(tradução: doispontos)



17 de junho de 2005

na areia húmida

(sobre o «ermitar»)

A solidão verdadeira, quando a conhecerei de novo?
Vejo-me a caminhar à beira da água, embebido em mim mesmo.
Os meus pés deixam marcas na areia húmida, o meu cabelo
esvoaça suavemente ao vento do outono, brisa vinda de longe.
De mãos nos bolsos, eu sei que me afastei de tudo, do meu
destino e das cidades, dos pais e dos filhos que me couberam
para que também eu conhecesse o peso das palavras e do tempo.

Praia do Norte que chamas por mim, floresta densa
coberta de neve, quando virá enfim a manhã de novembro,
quando poderei caminhar na tua areia ensopada de sal?
Na véspera terei posto uma cruz nos dias que faltam
para que o mês termine. O sucesso da minha existência
terá deixado de interessar-me. De manhã saí de casa, era cedo,
como se fosse ao encontro da morte que espera por nós
na luz pálida de um dia igual aos outros.

João Camilo | A mala dos Marx Brothers | 1988



15 de junho de 2005

as bolas de sabão 


As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.

Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.

Alberto Caeiro | O Guardador de Rebanhos | 13-03-1914



13 de junho de 2005

adeus


Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos,
carregada de flor e dos teus dedos;

como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve, e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.

Como se a noite se viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde teu corpo principia.

Como se houvesse nuvens sobre nuvens
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.

Eugénio de Andrade | As palavras Interditas | 1950-1951
(em memória de Eugénio de Andrade)



6 de junho de 2005

não são as amoras

© António Manuel Pinto da Silva @ www.olhares.com

Não são as amoras
que se elevam
não,
mas os olhos que nelas caem.

Nem é o peito
que se ergue
não,
mas as mãos que aí mergulham.

Não é a água
que no corpo salta
não,
mas o faro desperto que a bebe.

Nem é a manhã
que da alegria fala,
não,
mas a luz da noite que a escreve.

Não é o instante
que se declara
não,
mas a eternidade que o manteve.

No teu peito de amoras
a água aviva uma luz absurda.
Guarda o cheiro inesquecível do tempo.

(em celebração da xi)